Mulheres violadas pelo Daesh obrigadas a abandonar os filhos
Radio Latina 1 6 min. 07.06.2024

Mulheres violadas pelo Daesh obrigadas a abandonar os filhos

Mulheres violadas pelo Daesh obrigadas a abandonar os filhos

Foto: associação Stand Speak Rise Up!
Radio Latina 1 6 min. 07.06.2024

Mulheres violadas pelo Daesh obrigadas a abandonar os filhos

Foi uma sala em lágrimas que aplaudiu de pé o documentário da jornalista belga Pascale Bourgaux, “Hawar, nos enfants bannis”, no UTOPIA, em Limpertsberg. Entre os espetadores, estava a Grã-Duquesa Maria Teresa que também não escondeu as emoções. Aliás, foi a mulher do chefe de Estado, quem promoveu essa exibição no Luxemburgo, através da sua associação Stand Speak Rise Up!

Tal como a associação que a soberana criou, o documentário pretende alertar o mundo para uma realidade tão cruel que é difícil de descrever: a violação como arma de guerra. A película foca-se nas mulheres yazidis – uma comunidade minoritária religiosa originária principalmente do norte do Iraque –, através do testemunho raro, pois o tema é tabu, de uma das vítimas da guerra.

Em 2014, milhares de mulheres yazidis foram raptadas pelo grupo terrorista Daesh, que se autoproclamou de Estado Islâmico. Os homens foram separados das mulheres e crianças. As crianças foram transformadas em meninos soldados. Alguns dos homens abatidos. As raparigas e mulheres vendidas, sorteadas como uma tômbola, e atribuídas aos jihadistas, tornando-se escravas sexuais. Algumas foram violadas por mais do que um homem. Muitas tiveram filhos.

Quando essas mulheres são ‘devolvidas à sua gente’, as famílias aceitam-nas de volta na comunidade yazidi, mas rejeitam os filhos. As mulheres são, então, forçadas a abandonar os seus filhos porque não têm outra escolha. Não têm independência financeira, formação escolar e sobretudo direitos. Os filhos, fruto da violação, são assim banidos. Colocados em orfanatos, longe das mães. As mães desesperam. Algumas não aguentam que a tortura continue, desta vez perpetrada pela própria família que rejeitam os filhos, de homens que queriam dizimar toda uma comunidade, e põem fim à própria vida.

“O corpo da mulher tem de deixar de ser um campo de batalha”

A Grã-Duquesa, tal como o documentário de Pascale Bourgaux, não pretende 'atacar' tradições, como as da comunidade yadizi, mas despertar consciências para o sofrimento de mães e filhos. Na sala de cinema do UTOPIA estavam, esta quinta-feira, dia 6 de junho, homens e mulheres yazidis, exilados nos países vizinhos Alemanha e Bélgica, que também terminaram a sessão em lágrimas. Impossível não 'quebrar' face ao sofrimento destas mães.

O documentário mostra um pedido de socorro, tal como o título da película indica “hawar”, que em curdo significa SOS e é também sinónimo de genocídio. O ataque do Daesh à região em 2014 foi, de resto, classificado pela ONU como genocídio. Estima-se a morte e deslocamento de 400 mil pessoas.

Questionada pela Rádio Latina sobre o que a levou a querer mostrar este documentário no Luxemburgo, a Grã-Duquesa responde “porque é o meu país”. A questão não é inocente, a resposta surge como uma evidência. Afinal, por que há de o público luxemburguês interessar-se pelos milhares de vidas destruídas tão longe? É que, sem nos apercebermos, a tragédia está à nossa porta. 

Também há jihadistas europeus, incluindo do Luxemburgo

Nas veias de algumas dessas crianças banidas, que não têm qualquer existência legal, corre sangue europeu. Centenas de jihadistas são europeus. No orfanato, que acolhe as crianças filhas de pais terroristas e, que permitiu que a realizadora belga filmasse, há crianças loiras de olhos azuis. São filhos, sem dúvida, de europeus. Homens que se radicalizaram e deixaram as suas terras natais para ir combater pelo Daesh.

É o caso de Steve Duarte que trocou o Luxemburgo pelo autoproclamado Estado Islâmico em setembro de 2014. O terrorista luso-luxemburguês, cujos pais são originários da Figueira da Foz, foi capturado na Síria em 2019, por forças rebeldes, segundo confirmou à Rádio Latina, a 31 de maio desse ano, o porta-voz do Ministério Público, Henri Eippers. Já detido, Steve Duarte confiou em junho de 2019 ao média curdo rudaw.net que casou com uma francesa cujas raízes familiares se encontram “em África”. Confiou, na altura, ter dois filhos com ela, um rapaz de três anos e uma rapariga de dois. Steve Duarte manifestou o desejo de cumprir pena de prisão no Luxemburgo e de vir para cá com a família. 

A violação como arma de guerra na Europa

Mulheres violadas durante a guerra parecia uma atrocidade longínqua, mas a Grã-Duquesa começou a falar deste assunto tabu através da organização de um fórum internacional no Luxemburgo, em março de 2019, com a presença de três prémios Nobel da Paz, o doutor Denis Mukwege, Nadia Murad e o professor Muhammad Yunus, e, sobretudo, 50 mulheres sobreviventes de violações de guerra que deram o seu testemunho. 

Desde então outras guerras sugiram e os mesmos crimes continuam a ser perpetrados “mesmo aqui ao lado, a algumas horas de voo do Luxemburgo, na Ucrânia”, lamenta Maria Teresa aos microfones da Rádio Latina.

Stand Speak Rise Up! Levantem-se, falem, levantem-se!

“Não temos a pretensão de acabar com as guerras. Não fazemos política. Mas podemos combater a violação como arma de guerra”, diz a Grã-Duquesa. “Face à urgência, temos de ter um plano B, C e D”.

E, um dos planos da associação Stand Speak Rise Up!, que Maria Teresa fundou e preside, é dar um lar a essas mães, torturadas e violadas durante a guerra, para criar os seus filhos, indesejados por muitos, mas inocentes. Na República Democrática do Congo, por exemplo, a associação da Grã-Duquesa compra terrenos e constrói casas para essas mães.

A Stand Speak Rise Up! já mudou milhares de vidas de sobreviventes de guerra. Graças a ela, meninas no Afeganistão têm acesso a cuidados médicos, crianças nascidas de violações são escolarizadas no Uganda e mulheres ucranianas recorrem aos tribunais para denunciar os violadores.

Apoio às sobreviventes de guerra e aos seus filhos

Ter uma Grã-Duquesa a defender uma causa dá visibilidade, mas nem sempre facilita a angariação de fundos.

Chékéba Hachemi, escritora afegã e sobretudo militante dos direitos das mulheres há 30 anos, é cofundadora da Stand Speak Rise Up!. Questionada pela Rádio Latina sobre o financiamento da associação, diz que, no início, os beneméritos questionam “porque é que a Grã-Duquesa não usa o dinheiro dela ou pede dinheiro ao Governo?” ou então “porque é que não ajuda as pessoas do país dela?”. Mas depois quando percebem o que a associação faz no terreno, "tornam-se doadores fiéis". “E, convém não esquecer”, acrescenta, "que a Grã-Duquesa e o Grão-Duque têm uma fundação que ajuda os mais vulneráveis no Luxemburgo.

Hachemi declara-se orgulhosa por trabalhar ao lado da mulher de um chefe de Estado, em funções. “Se todas as primeiras-damas do mundo estivessem tão empenhadas [em questões que, infelizmente, são complexas, mas que nos preocupam em todo o mundo, como a violação como arma de guerra], então, o mundo seria um sítio melhor”.

Artigo: Manuela Pereira