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A ressurreição de Cannes

Entre os momentos inesquecíveis deste ano já cá ficam dois filmes portugueses: "Alma Viva" e "Restos do Vento".

"Alma Viva" foi um dos filmes portugueses em destaque na edição deste ano de Cannes.
"Alma Viva" foi um dos filmes portugueses em destaque na edição deste ano de Cannes. © Créditos: DR

2020 não contou. Nem para mim, nem para si, nem para o festival de Cannes. A edição de 2021 do maior festival de cinema do mundo foi apressada: primeiro esteve em dúvida e depois foi adiado.

O festival do ano passado foi em julho (uma excelente ideia porque não choveu), mas ainda faltou gente com medo da pandemia e com restrições que não permitiram a muitos festivaleiros viajar.

Finalmente tudo voltou à normalidade. Cannes em maio. Sem máscaras, apesar dos cartazes que por todo o lado recomendam o seu porte. Não usei nem uma única vez, mas confesso que ainda me sinto intimidado sem ela e que em salas cheias ou filas longas e muito povoadas, a máscara até aconchegava…

© Créditos: DR

2022 tem tudo dos outros anos e do velho festival, mas este ano há TikTokers. Avisam-nos em grandes cartazes que eles não fazem cinema, mas que tiktokam. O festival procura desempoeirar-se e encontrou novos parceiros para chegar a públicos que já não vêm o Canal+ e que passam pelas plataformas de difusão de vídeo para se informarem.

Felizmente na Croisette, no dia da abertura, nada mudou: estavam lá os fotógrafos, as luzes, os fãs incondicionais empoleirados em escadotes para verem as estrelas e o presidente da Ucrânia, em direto de Kiev.

Afinal a presença de filmes portugueses na edição deste ano do festival foi uma boa surpresa: começámos com quase nada e acabamos de barriga cheia, com presenças em quase todas as seleções.

A abertura do festival foi das mais surpreendentes. Alternando entre política e superficialidade e um filme de zombies que teve de mudar de nome à última hora por causa, justamente, da política.

Cannes enfrenta algumas escolhas difíceis. Mas a gente diz isto todos os anos. Eu acrescento que os realizadores e os produtores são sempre os mesmos, mas os mesmos conseguem surpreender-me.

Diz-se que o festival está preso no passado, ou que está esgotado, ou que os grandes filmes vão para Veneza. Tudo isso pode ser verdade; a indústria está em movimento e Cannes já mudei de ideias duas vezes sobre as plataformas de streaming, por exemplo.

E ainda assim Cannes perdura. A mística existe e visitar o festival, nem que seja apenas durante um fim de semana é sempre um prazer e uma descoberta.

Os créditos finais do festival estão longe de aparecer, apesar dos provectos 75 anos que agora se comemoram. Entre os momentos inesquecíveis deste ano já cá ficam dois filmes portugueses: "Alma Viva" e "Restos do Vento".

O primeiro é a longa metragem iniciática de Cristèle Alves Meira, uma portuguesa de França que se inspira na terra natal dos seus familiares para assinar uma história universal. A realizadora que tanto tem para nos dar, conseguiu, contra ventos e pandemia, rodar "Alma Viva" em Trás-os-Montes e dar a conhecer ao mundo uma estrela, a sua própria filha que protagoniza o filme.

Cristèle Alves Meira já vem a Cannes pela terceira vez, tendo levado ao festival duas curtas, mas a presença na Semana da Crítica com a sua primeira longa, deixa a luso-francesa orgulhosa e abre mais uma porta ao cinema português.

Afinal a presença de filmes portugueses na edição deste ano do festival foi uma boa surpresa: começámos com quase nada e acabamos de barriga cheia, com presenças em quase todas as seleções. Claro que nos podemos queixar que desde "Juventude em Marcha" que não há uma obra nossa na competição oficial, mas quando se contam (pelos dedos de seis mãos) os filmes produzidos em Portugal ter meia dúzia de obras em Cannes é obra. É obra de muita qualidade e de prestígio.

Na competição principal, mas fora de concurso, está o novo trabalho de Tiago Guedes. O homem que nos deu "Herdade" volta a surpreender e a elevar a fasquia.

"Restos do Vento" é um filme poderoso que, tal como "Alma Viva", transporta os espectadores para uma aldeia e para os seus usos e costumes que nem sempre são de louvar. O filme vale por muitas coisas boas, mas oferece a Albano Jerónimo o papel de uma vida. Sem menosprezar Nuno Lopes que, além deste filme, está em mais produções representadas no festival. O nosso Nuno não para.

Ia terminar por aqui, até porque o festival só fica concluído no fim de semana, mas sinto que os meus fiéis leitores estarão a perguntar-se: então o gajo não viu o filme do Tom Cruise?

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Pois então aqui fica a menção a "Top Gun: Maverick". Trata-se de um dos poucos gigantes de Hollywood a fazer a viagem até ao sul de França este ano. Sinceramente é um filme que eu esperava odiar e acabei por gostar. Claro que será um grande sucesso de bilheteira, e que é o tipo de filme que exige ser visto no grande ecrã, o que é muito bom para a indústria.

Tom Cruise regressa no papel de ás da aviação, agora envelhecido, e assombrado pelo passado e sempre na beira do abismo. "Top Gun: Maverick" não devia funcionar... mas funciona. É uma homenagem quase póstuma a brinquedos perigosos com uma pegada de carbono do tamanho do mundo.

Na verdade, este filme, tão americano, pode servir de metáfora para descrever o festival de Cannes que também tem absolutamente tudo para falhar mas que vai andando por aqui 75 anos depois.

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